• Prof. Carlos Augusto Pereira dos Santos Possui Graduação em ESTUDOS SOCIAIS pela Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA (1990), Mestrado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ (2000) e Doutorado em História Do Norte e Nordeste do Brasil pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (2008). Atualmente é Professor da UNIVERSIDADE ESTADUAL VALE DO ACARAU - UVA. Leciona as disciplinas de Historiografia Brasileira e História do Brasil I e II. É tutor do Programa de Educação Tutorial - PET HISTÓRIA/UVA. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: militancia comunista, ditadura, cotidiano, cultura e trabalhadores urbanos. conheça o grupo de pesquisa Cidade, Trabalho e Poder. Clique Aqui
Posted by Camocim Pote de Histórias 2 comentários


ONDE ANDARÁ MARLENE?

“Venho solicitar a clarividente atenção de Vossa Excelência para que seja conjurada uma calamidade que está prestes a desabar em cima da juventude feminina do Brasil. Refiro-me, senhor presidente, ao movimento entusiasta que está empolgando centenas de moças, atraindo-as para se transformarem em jogadoras de futebol, sem se levar em conta que a mulher não poderá praticar este esporte violento sem afetar, seriamente, o equilíbrio fisiológico das suas funções orgânicas, devido à natureza que dispôs a ser mãe. Ao que dizem os jornais, no Rio de Janeiro, já estão formados nada menos de dez quadros femininos. Em São Paulo e Belo Horizonte também já estão se constituindo outros. E, neste crescendo, dentro de um ano, é provável que em todo o Brasil estejam organizados uns 200 clubes femininos de futebol, ou seja: 200 núcleos destroçadores da saúde de 2,2 mil futuras mães, que, além do mais, ficarão presas a uma mentalidade depressiva e propensa aos exibicionismos rudes e extravagantes.”

(Trecho de uma carta datada em abril de 1940, enviada ao então presidente da República, Getúlio Vargas pelo cidadão brasileiro José Fuzeira).

Não sei é pela aproximação da Copa do Mundo, mas, é que veio de repente na lembrança uma história, diria melhor, fato histórico que nunca saiu da minha cabeça. Quando adolescente meu pai vivia me surrando porque dava umas escapadas (depois de fazer as tarefas domésticas e da escola) de casa e ia jogar num campinho de terra dentro das dependências do terreno da Estrada de Ferro. No entanto, no domingo, invariavelmente, estava ele a levar-me na garupa da bicicleta rumo ao Estádio Fernando Trévia ou aos campos da periferia de Camocim. Mamãe nunca entendeu esta ambigüidade de papai. Não queria que o filho jogasse, mas o levava a ver os duelos do esporte bretão (como se dizia antigamente). Nem eu. No entanto, era muito divertido ver meu pai se esgolear bravejando contra os adversários. Normalmente eram coisas do tipo: - Mata esse fie duã égua que a gente enterra no cemitério! Para quem não conhece Camocim o cemitério fica do outro lado da rua do estádio.

A lembrança, no entanto a que me referi acima tratava-se da presença de uma mulher no estádio por volta do final dos anos 1970. Não, não era uma torcedora. Aliás, eram poucas as mulheres que tinham coragem de freqüentar um estádio naqueles tempos. Era a intrépida e pioneira Marlene. Sua função: jogadora de futebol. Posição: meio-campista. Na semana que antecedeu o jogo não se falava outra coisa – um jogo de futebol com a presença de uma jogadora e pior, ou melhor; jogando entre os homens. Era quase inacreditável, mas a propaganda dos carros de som anunciavam a craque Marlene, diretamente de Sobral, pertencente a um time do subúrbio da Princesa do Norte.

Meu pai parecia mais ansioso do que eu para ver a tal Marlene e contava os dias para o espetáculo – misto de futebol e circo. Até outras mulheres se encorajaram e foram ver a representante do gênero entre os 22 jogadores. Quem conheceu o Estádio Fernando Trévia, sabe que o campo de jogo era um tremendo areal e os atletas se exauriam para chegar ao fim, imagine uma mulher. Quanto tempo resistiria? Faria gol? Driblaria alguém? Só podia ser sapatão. Estas, dentre outras, eram as apostas feitas ao pé do muro, pois ainda não tinham construído arquibancadas.

Três da tarde, sol a pino, os times entram em campo. Palmas, algumas vaias. O time sobralense com Marlene à frente causou reboliço. Morena, traços caboclos, pernas bem torneadas, uma tira de pano na cabeça é do que me lembro daquela mulher. Não sei se existia nos bastidores alguma recomendação entre os promotores da partida para que os homens aliviassem com a Marlene, o certo é que a expectativa crescia. Aos poucos, Marlene foi fazendo seu show apesar das dificuldades do campo, um toquinho aqui, outro toquinho ali, tentativa de drible num adversário, bola matada no peito...

No entanto, talvez por não poder fazer mais do que aquilo, o ineditismo de uma mulher jogando entre os homens foi se desfazendo e a torcida masculina em maioria já impaciente, jorrava em impropérios seu preconceito:

- Derruba essa égua!

- Vai lavar roupa no Rio Acaraú!

Depois de tanto tempo, talvez por eu estar morando em Sobral, fico a me perguntar onde estará Marlene, se guarda alguma fotografia dessa época onde o marketing de sua atuação como jogadora entre homens, percorreu toda zona norte, causando frisson e admiração entre torcedores. Uma entrevista com Marlene poderia nos dizer muito sobre o futebol e a condição feminina sobre aqueles tempos (ditadura militar) em que era proibida a prática do futebol entre mulheres, quiçá entre homens. Onde estará Marlene? Respostas para onde for publicado este texto.

Carlos Augusto Pereira dos Santos

Professor de História da UVA.

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2 Responses

  1. Ed Passos says:

    Que texto!

    Fiquei com vontade de conhecer Marlene, mais um herói em silêncio.

  2. Jane Santos says:

    Nossa! Adorei o texto, muito legal. Algum historiador sobralense tem mesmo que procurar escrever sobre Marlene... afinal, daria numa boa discussão historiográfica, não é mesmo?

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